Hoje será o segundo. O segundo Dia das Mães sem você, mãe. Ano passado foi o primeiro. Longe. Separados. Por causa da pandemia. Meu voo foi cancelado no próprio dia em que ia viajar para te ver. Teria sido um Dia das Mães antecipado. Mas eu ia conseguir te ver.
E aquela pandemia que não vou nem dignificar com um nome nos separou, pela primeira vez em anos, no que seria o seu dia. Nos anos anteriores havia conseguido dar uma fugida para puder estar ao seu lado, lhe dar e sentir o nosso tenro abraço, o beijo na sua testa, segurar a sua mão na minha como você segurou a minha mão na sua naquela foto no jardim da casa da sua mãe “Nanny” na Inglaterra nos anos áureos da minha infância.
Teria olhado nos seus olhos, derramando amor, às vezes até com lágrimas, mas não de tristeza e sim de alegria, de ver o seu “Den” na sua frente segurando a sua mão. Pois você foi a pessoa mais singularmente alegre e feliz que conheci nessa vida, mãe.
E só nos últimos anos pude perceber como sua vida não foi nada fácil. Da sua infância e juventude de conto de fadas na Inglaterra, casou com um piloto Americano e foi morar na fazenda com ele no Texas. Meu amigo Bryan comentou como admirava o seu caráter e tenacidade para crescer na bucólica Shrewsbury e depois ir passar toda sua vida adulta na fronteira feroz entre o México e o Texas. Mas ninguém saberia dos seus desafios, pois você enfrentou cada um com a esperança e gentileza de uma lady.
E você gostava muito de sorrir, e rir. E riu muito e alegrava muito quem lhe conhecia e quem teve a bênção de passar tempo na sua presença. E apesar das dificuldades de sair de uma casa só de mulheres, com sua mãe e suas três irmãs, você veio viver só com homens, dois meninos e um homem, seu marido. Homem que de caráter e determinação tinha de sobra. Mas de ternura e acolhimento, eu já sei o quanto lhe faltou.
E mesmo assim você fez da vida do seu marido e dos seus filhos a sua. E entrou em nossas brincadeiras e jogos e atitudes masculinas, certamente mais duras e bruscas que você havia conhecido, tendo sido criada em uma casa de mulheres. E só neste último ano, fui descobrir o quanto você foi responsável pela criação de memórias da nossa família. Tantas e tantas fotos que descobri. Aos milhares na sua casa. Em álbuns, envelopes e caixas. Você registrando os momentos marcantes das nossas vidas. E depois de imprimir as fotos, escrevendo atrás, quem era e quando foi. Criadora de memórias, não só as que você registrava, mas também as que adentrava e participava.
Às vezes para registrar uma foto com sua presença, você colocava a máquina em um apoio e apertava o timer para disparar com você ao meu lado. Como aquela vez em que a gente estava indo para uma noite de gala na ópera. Você era tão elegante, mãe, e tinha tanta classe. E incrivelmente ao mesmo tempo era a pessoa mais acessível e amigável que já conheci. Vi tantas vezes você parando para conversar com alguém que ninguém estava notando, mas que você havia notado. Você viu, e sabia que ela precisava só de alguém para chegar perto e dizer “Bom dia! Tudo bem com você?”
O nosso encontro me foi roubado pela pandemia, a minha viagem para lhe ver, cancelada, e o nosso Dia das Mães não aconteceu. Mas Deus é tão bom. Ele já havia trazido para minha vida uma mulher, também mãe, que ficou fascinada com a minha mãe. E ela começou, aos poucos, discretamente como ela é, a puxar gentilmente de mim detalhes, sentimentos, experiências com a senhora, que eu havia posto para trás, no fundo da minha memória.
Porque mãe, morando distante assim, eu não conseguia lidar com o tamanho da saudade que sentia pela senhora. E sabia que a sua era igual à minha. Eu tinha plena convicção de que havia recebido a minha missão de Deus, portanto, não podia nega-la. Mas não podia ficar com a senhora. Então deixei muita coisa para trás. De certa forma, sem perceber, sem querer eu descobri depois que deixei você para trás mãe. Me perdoe, mãe.
Mas esta mensageira do Senhor começou a trazer as experiências, as memórias para minha lembrança, e com elas o significado, a importância que você teve e sempre terá na minha vida, mãe. Então ao longo do ano em que fui impedido de lhe ver pessoalmente, no presente, eu lhe redescobri no passado, no resgate de memórias e recordações, nos registros das fotos, na companhia da minha guia fascinada pela mãe desse homem, eu voltei para você.
E mesmo sem entender porque isso estava acontecendo, nem como, fui sendo sensibilizado para sua presença, mãe, sua importância como nunca havia visto antes. Talvez era preciso uma mãe de um menino para me ajudar a perceber o quanto essa relação é preciosa, e como Deus havia abençoado nós dois. Pois meu irmão que sempre puxou papai, que sempre seguiu ele e foi também puxado por ele, saiu de cena muitas vezes e eu ficava lá sozinho. Então a senhora me trazia para seu lado. E eu virei seu companheiro. E só ano passado, no ano em que não lhe vi, fui levado a descobrir o quanto o seu acolhimento do seu filho mais novo foi importante para a formação da vida dele.
Não era uma competição, tenho certeza de que a senhora amava e cuidava tanto de André como de mim. Mas pela magia dos planos de Deus havia uma sintonia entre nós dois, que quando você me levou para o mundo da arte, da música clássica, da literatura, fui descobrindo exatamente o mundo que eu queria, onde eu pertencia. O meu lugar. O seu lugar e o meu lugar eram os mesmos.
Você me colocou naquele clube de jovens leitores, e arrumava dinheiro para comprar livros que chegavam, um a cada mês e fui lendo e enchendo a minha prateleira no corredor e depois uma pequena biblioteca. Você abriu para mim um mundo interior de experiências deslumbrantes e mágicas que tanto precisaria nos anos depois para escapar da crueldade que sofri na escola.
Você foi a minha guia, mãe, me conduzindo pelo território iluminado da imaginação, da criatividade, de onde eu podia sonhar por um mundo melhor e começar o longo e por vezes doloroso processo de resignificar e transformar as sombras e cicatrizes dessa vida, em arco-íris e raios de energia para fazer um mundo melhor.
E você sempre procurou fazer isso, mãe, um mundo melhor. Melhorar os lugares onde estava, as vidas das pessoas por onde passava. Porque como alguém uma vez disse: podemos praguejar contra as trevas ou ascender uma vela. Tantas velas a senhora ascendeu, uma delas bem dentro de mim. Obrigado mãe.
Com você, mãe, aprendi o valor de cada pessoa, especialmente a pessoa isolada, solitária, que ninguém está olhando. De olhar para essa pessoa e perceber que ela precisa de uma palavra, um abraço, uma força. E se dispor a fazer isso, mesmo para um estranho.
Aprendi com você, mãe, o valor de ajudar as pessoas desamparadas, sem ajuda, sem apoio. E ao fazer isso de estar presente pessoalmente, de conhecer por nome, se dispor a adentrar em uma vida onde você sabe que as necessidades são bem superiores às suas condições. Mas você se dispões a fazer pelo menos o que pode. Pelo menos para este. E Deus sempre providencia.
E assim foi nascendo o nosso ministério “Jesus nas Ruas”. Queria que a senhora pudesse ter chegada para ir a um dos cultos da nossa igreja em plena praça pública. Você ia adorar. As mesmas pessoas que a senhora sempre buscava, se importava. Uma igreja ao ar livre cheia delas. A igreja que a senhora inspirou. Obrigado Mãe por ter me dado esse amor por Jesus aqui na terra. Jesus em pessoa. E tantos outros servos e servas como a senhora com a mesma visão.
E tudo isso pessoalmente. Pois, quando Jesus surpreendeu a todos reunidos na sua visão do dia do juízo, ele não disse “Estive com fome e a sua organização me deu algo a comer. Estive com sede e a sua igreja me deu um copo da água.” Ele disse “você”. Você me deu um copo da água. É pessoal e individual. É assim que devemos agir.
E foi assim que a senhora foi me apresentando a Jesus. Foi a senhora que na maioria dos domingos levou eu e André à igreja. Não é que Papai não queria, pois em muitos domingos ele estava trabalhando. Mas só uma tempestade para impedir a senhora de nos levar à igreja.
E assim foi crescendo a minha fé em Jesus. Meu conhecimento do Caminho. Meu relacionamento pessoal com Jesus. Eu vi como a senhora buscava ele na Palavra e na oração. E foi assim que aprendi da senhora a maior de todas as lições. Foi assim que Deus plantou a fé no meu coração. Fé essa que um dia me levaria bem longe da senhora. Bem longe. Foi o próprio Rei Davi que falou também, como a sua mãe foi responsável pela fé dele.
“Olha de novo para mim e tem misericórdia de mim; dá-me a tua força e salva-me, pois eu te sirvo, como te serviu também a minha mãe” Salmo 86:16.
“O Senhor Deus sente pesar quando vê morrerem os que são fiéis a ele. Ó Senhor, eu sou teu servo; eu te sirvo, como te servia a minha mãe. Tu me livraste da morte.” Salmo 116:15-16
Então, com o tempo fui vendo o Senhor me chamando a ir para o Brasil em uma missão. Lembrei esses dias, quantas vezes, passeando indo em algum lugar juntos, você me acompanhando no que parecia a interminável sequência de afazeres para me preparar para mudar para o Brasil… longe de você. Me afastando de você.
Imagino agora o quanto aquilo devia doer no seu coração. Mas lá você ia comigo, tão feliz da vida para estar comigo quanto eu fiquei em lhe acompanhar na minha infância nas lojas de tecidos que você vasculhava para achar aquele tecido, aquele botão especial para a camisa, a blusa, o vestido que ia costurar para alguém. E eu lá com você, lendo um livro sentado em uma cadeira na loja, ou sentado à mesa de casa lendo e estudando. E às vezes quando você não sabia, ficava olhando para você, pensando em como minha mãe era linda.
E você me acompanhou naqueles lugares, mesmo no nosso último dia antes de eu partir para o Brasil. E quantas vezes não ouvimos, em alguma loja, em um restaurante, eventualmente parecia que era algo programado, não podia deixar de ser sempre a nossa música “Perhaps Love” de Plácido Domingo e John Denver.
Talvez o amor é como uma janela
talvez uma porta aberta,
lhe convida a chegar mais perto,
ele quer lhe mostrar mais
E ainda que você se perca
E não sabe o que fazer
A memória do amor lhe mostrará.
de “Perhaps Love” de John Denver
E você olhava para mim com aquele brilho nos olhos: “nossa música!”. Não sei como você conseguia conter as lágrimas e ainda conseguia sorrir. Agora entendo. Você estava feliz por mim. Você me viu na missão para a qual Deus havia me chamado. O mesmo Deus para o qual você havia orado tantas e tantas noites, não sabendo a hora que eu chegaria, nem como estaria… e por mais longe que tenha me afastado de Deus em determinada época, e de você mesmo mamãe, você nunca parou de orar por mim.
E agora me vendo partir para uma missão, chamado por Deus, para um lugar tão distante e desconhecido. Sem família, sem amigos, só com alguns colegas que conhecera meses antes… mas você sabia que era Deus e confiava que era Deus. E abriu sua mão, me deixou ir, e me deixou ir com um sorriso no rosto.
Não sei como você conseguiu fazer. Só sei que foi por uma represa imensurável de amor. Amor este que hoje sinto tanta falta. Eu sei que é amor que sai de mim para outros. Para tantos outros. Eu sei de onde veio esse amor. Veio da senhora. Foi todo o amor com o qual você encheu meu coração. E tenho que repartir, não consigo segurar…. Me desculpe mãe, mas ainda queria mais do seu. E sinto tanto a sua falta.
E você veio ao Brasil. Tantas vezes. Acho que foram mais de dez viagens. Quase todas sozinha, sem falar uma só palavra de português, mas com aquela mesma tranquilidade de uma fé ingênua de que Deus cuidaria de tudo. E como ele cuidou. Veio e voltou cada vez na proteção do Altíssimo. Veio para meu casamento. Depois para o nascimento de cada uma das suas netas brasileiras. E lhe honrei com o nome latinizado da primeria e pus na minha segunda filha o que teria sido o nome da filha que você um dia me contou que queria. Teria sido eu, mas ao invés de uma filha, nasceu outro filho. Me amou tanto mesmo assim.
E como amou suas netas. Fez a longa viagem tantas vezes para aniversários de uma ou da outra, para Natal… Cada ano que não podíamos te ver, você veio nos encontrar. Sempre com uma mala cheia de presentes. Poucas coisas suas, quase tudo presentes para nós.
E buscou e encontrou no Brasil tantas pessoas que ajudou. Uma professora já de idade, com as crianças da sua aulinha rural de inglês que você visitou e ainda ajudou dois a fazerem licenciatura. Uma família necessitada que você ajudou e ainda buscou outros parceiros para ajudar durante anos… Sempre ajudando, sempre encontrando um ou outro, do lado, na margem, invisível para os outros, mas que você viu, mãe, que você descobriu, e com a graça de Deus que parecia irradiar da sua pessoa, você iluminou a vida deles. Um por um. E sempre dando graças a Deus por puder ajudar mais um. Mais um…
E depois, veio a enfermidade. A demência. Outra palavra que não queria nem pronunciar. Não devia ter direito de entrar em nosso vernáculo. Nas últimas vezes, nos últimos Dia das Mães, você estava aqui, e não estava. Estava entre um mundo e outro. Eram bons momentos, mesmo com a dor de lhe ver cada vez mais frágil, menos aqui, menos mãe aqui para abraçar e segurar a minha mão e sentir a minha presença.
Mas sempre senti o seu esforço para estar presente. Seu olhar concentrado, voltando com tudo que podia daquele lugar distante. E eu senti de coração a senhora presente, que você sabia que eu era alguém importante. E quando perguntei no ano anterior, o que a senhora lembrava de mim, você sorriu e disse “Eu lembro que você era um bom menino.” Que alegria mãe! E quando você não podia dormir de noite e cantamos juntos “This little light of mine.” (“Minha Pequena Luz”).
E quando conversávamos, você balançava muito a cabeça, olhando sempre nos meus olhos, como quem talvez não lembra, mas não quer que o outro pare, então vai indo na história, no conto, na lembrança. Colorimos desenhos, assistimos aquelas comédias antigas em preto e branco. E rimos juntos. Você rindo de novo. A sua felicidade voltando. Como voltou quando lhe mostrei a foto do Dia dos Pais de mim com as meninas, agora jovens mulheres, suas netas. E você ficou tão feliz por elas!
Ainda que não tenhamos chegado à data “oficial”, por mim esse dia dois de janeiro, dez dias antes da sua partida, foi o nosso último Dia das Mães. Estávamos juntos. E tivemos as nossas risadas, o nosso abraço, nosso beijo, o nosso olhar. E a presença um do outro. Obrigado, mãe, por nosso último Dia as Mães. Alguns comentaram, e eu agora entendo assim. A senhora me esperou chegar. Obrigado por me esperar, mãe.
E agora, partiu pela última vez, rumo à última e maior de todas as viagens…Sei que você está com Jesus. Sei bem onde a senhora está e estou tranquilo sobre isso. Sei que vou vê-la de novo. Como Max bem disse, a Terra está mais pobre sem você e o céu bem mais rico.
Por algumas semanas após o enterro, eu vi as minhas nuvens favoritas no céu, os cirrus, altos e sedosos, sempre um ou outro durante cada dia em forma de asas enormes abertas em voo. E pensava na senhora voando alto, livre, e feliz da vida na presença do seu Senhor.
Então, fica assim, mãe. A senhora me aguarda lá na praia. Aquela mesma onde vamos encontrar Jesus e os outros mais na frente. Me aguarde para a gente ter o nosso primeiro encontro lá. Só eu e você. Ter o nosso abraço, olhar um nos olhos do outro. Vamos andar de mãos dadas naquele ventinho gostoso do céu. E quero lhe apresentar a alguém bem especial, que muito queria te conhecer. Depois andaremos juntos em direção a Jesus, só um pouco mais adiante. Me aguarde. A gente se vê. Obrigado por ser minha mãe! E feliz Dia das Mães!
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